Os 100 primeiros dias de um governo, antes de tudo, deve-se salientar, é uma régua fictícia. Ela foi criada pelos próprios governantes na marquetagem deles em tempos de mídias digitais para se comunicar com os fãs, eleitores e os adversários. É para dizer a que vieram, ainda mais, quando os eleitos tinham propostas de mudanças ao estado caótico que diziam estar a cidade, no caso de Gaspar. Aliás, este foi o tema da campanha e dos discursos dos vencedores.
Estes 100 primeiros dias, é um trégua. É uma marca de propaganda e pronunciamentos para encher a bola dos apoiadores, pois eles, mais que os governantes de plantão eleitos, precisam disso para se orgulharem da escolha que fizeram e principalmente, tapar a boca dos céticos, adversários e dos críticos. Até quem estava na continuidade, como o prefeito de Chapecó, João Rodrigues, PSD, vestido de candidato a governador, exagerou. Relatou o que fez e mudou na sua cidade nos seus primeiros 100 dias de governo no seu segundo mandato. Foi assim com Adriano Silva, Novo, em Joinville. Foi assim em Florianópolis… Só não foi em Gaspar, onde se esperava muito do “novo”.
Então. O que o governo do “delegado prefeito” Paulo Norberto Koerich, PL (foto acima ao centro), e do seu vice multi-titulado, Rodrigo Boeing Althoff, PL (na foto acima à direita; do lado esquerdo está o presidente da Câmara, Alexsandro Burnier, PL), fez nestes 100 primeiros dias de governo? Um silêncio sepulcral. Sintomático. Então, eu devia parar por aqui, até porque a resposta está dada pelo próprio governo. E já estaria de alma lavada naquilo que escrevi até aqui, mas, por isso, estou sendo olhado, mais uma vez, com desconfianças e não como uma oportunidade para os próprios governantes reagirem à cidade em favor dos cidadãos e cidadãs, seus eleitores ou não.
Tudo está, por enquanto, tão igualzinho aos que foram saídos, e aí reside à constatação e o perigo: essa gente gosta de baba ovos quando está no poder e de valentes independentes como eu, quando na oposição. Simples, assim!
FALTOU SUBSTÂNCIA NA PROPAGANDA DOS PRIMEIROS 100 DIAS
Retomando.
Eu exagero? É só abrir o site oficial da prefeitura de Gaspar e nenhum artigo, relato, prestação de contas, desculpas ou promessas nele sobre este assunto: os 100 primeiros dias do governo de Paulo e Rodrigo.
E por que? Não se trata de cobrança de blogueiro ou uma peça de propaganda oficial.
Trata-se de uma necessária prestação de contas à cidade e aos 52,98% dos votos válidos que a dupla recebeu nas urnas. O delegado ainda não trocou a delegacia e de roupa para ser prefeito. O vice acha que é mais que o prefeito e não um simples reserva como manda a Constituição, mesmo que ache que há vazios de ideias, ações, poder e resultados no governo. A Câmara virou um pandemônio na sustentabilidade política a partir da frágil e minoritária própria base governamental. Pior: ela ainda não entendeu que é governo, é telhado de vidro e cada vez mais fino. E o partido PL é uma caricatura na liderança do processo político.
Ora, estava na cara que isto iria acontecer. Também escrevi várias vezes sobre isto.
Quando decidiu ser candidato, o delegado Paulo não tinha “sangue nos olhos” para querer a disputa, o cargo e muito menos à função. Foi levado por quem faz isso – a de escolher um nome do sistema – que atrasa a cidade desde meados dos anos de 1990. A equipe que está no governo tem cheiro de mofo, quando não é explicitamente à continuidade do que foi o tão criticado pelos novos, ou seja, o governo de Kleber Edson Wan Dall, MDB, com Luiz Carlos Spengler Filho, PP e Marcelo de Souza Brick, PP.
Há exceções, registro. Mas raras. E estão propositadamente abafadas, ou foram providencialmente abatidas precocemente por fofocas – que corre solta na prefeitura – e sufocamento financeiro diante da recorrente falta de recursos, como Charles Roberto Petry, na Fundação Municipal de Esportes e Lazer.
Ora, quem prometeu mudar, não fez a mínima lição de casa: mudar. Então não tem sequer o que mostrar do ponto de vista do seu próprio discurso vencedor e que aos poucos corre o sério risco de ser enganador como foi o que o antecedeu, no tal “avança Gaspar”. Espera-se que os 100 dias seja ao menos de experimento e com ele de virada, porque em poucos dias já serão seis meses, daqui a pouco um ano e faltará fôlego para as eleições do ano que vem.
Quem prometeu mudar, não se articula, não lidera e fica preso aos manhosos e interesseiros de sempre. Quem prometeu mudar, dá a clara impressão de que vai ampliando o tapete para deixar tudo o que está lá escondido, exatamente para não se incomodar e não ser incomodado. Transparência, continua sendo tão translúcida como antes. A comunicação antiga e falha. É uma produtora de press release ao gosto da falta de visão. Ela não é estratégica. Um desastre.

E para encerrar.
Duas publicações – há outras – pinçadas ao acaso nas redes sociais na semana dos 100 primeiros dias de governo de Paulo e Rodrigo revelam um pouco desse governo, ainda tropego, sem marca e resultado.
A primeira está na rede social do ex-prefeito Kleber. Ele se encontrou com o governador Jorginho Melo, PL, para uma foto, como se estivesse dando recados aos seus e aos que sugerem estar no seu encalço para colocá-lo no cadafalso e defensiva: estou aqui, bem vivo e bem acompanhado. A segunda é o prestígio – e bem à vontade – do “delegado prefeito” na formatura dos Bombeiros Voluntários (foto ao lado). É como se a cidade estivesse pegando fogo, estivesse num estado de calamidade e a pedir os primeiros socorros, que não vieram ainda. Ao menos novos bombeiros voluntários e alguns equipamentos já chegaram. Muda, Gaspar!
TRAPICHE

Vai ter CPI sobre o que a Delegacia Contra a Corrupção, de Blumenau, já apurou de supostas irregularidades nos contratos de varrição da curitibana Ecosystem desde 2017 em Gaspar. No olho do furacão estão o ex-prefeito Kleber Edson Wan Dall, MDB, os ex-secretários de Obras e Serviços Urbanos dele, Jean Alexandre dos Santos que na época era do MDB e hoje está no PSD (foto ao lado), bem como Luiz Carlos Spengler Filho, PP (foto abaixo), além de meia dúzia de ex-comissionados que eram obrigados a olharem as medições. Na apuração se provou que estavam superdimensionadas e geravam faturas exageradas para se pagar a mais sobre os serviços que efetivamente não foram feitos.

No tempo em que era para os vereadores fazerem esta apuração e denúncias, incluindo gente que se reelegeu, não foram feitas. A Bancada do Amém (MDB, PP, PSD, PSDB e PDT) onde estavam onze dos 13 vereadores, protegeu o supostamente irregular. Agora, que a polícia especializada fez o serviço, cuja investigação vai dar no Ministério Público para instruir um processo para a Justiça julgar, os vereadores resolveram dar espetáculo, gastar algo em torno de R$100 mil para chegar a mesma conclusão e ao final, correr o alto risco de inocentar politicamente os envolvidos, com isso, atrapalhar o que vai rolar na Justiça de qualquer forma.
Esta abertura de CPI dividia os vereadores. Tanto que só na sexta-feira, numa tensa reunião, fechou-se a questão. E mais uma vez, a cidade não ficou sabendo de nada. Na Câmara, nada protocolado. A cara assessoria de imprensa não divulgou nada. O presidente Alexsandro Burnier, PL, ainda queimado com a tentativa de implantar na surdina o Vale Marmita num jabuti de três palavras, apenas confirmou, porque não tinha como negar, a sua especialidade, a decisão de instalação da CPI com um lacônico, sim. Os demais vereadores, pisando em ovos, como se tivessem cartas nas mangas contra e a favor da CPI, contra o esclarecimento e a transparência com a cidade, cidadãos e cidadãs. Na sessão de terça-feira será lido o requerimento pedindo a instalação da CPI. E aí começarão à enrolação, o jogo de esperteza somada as vaidades que já afloraram.
Ora, se o caso é tão grave (e há outros), se a Câmara quer mesmo concorrer com o que a polícia já apurou neste rolo, se uma CPI na “Casa do Povo” é para o povo saber dos detalhes, o que mais uma vez os vereadores de Gaspar vão esconder, pois é assim que a CPI do governo de Paulo Norberto Koerich e Rodrigo Boeing Althoff, ambos do PL, começou. Ela parece que vai se repetir no “modus operandis” da última CPI e não só a última, registre-se. Nela, Bancada do Amém – agora em maioria na oposição – conduziu tão bem aquela CPI que abafou o caso dos áudios das conversas cabulosas entre os secretários de Kleber, Jorge Luiz Prucino Pereira, PSDB, e Jean Alexandre dos Santos, PSD, novamente no centro das atenções e medo. Muda, Gaspar!
Nesta segunda-feira, depois de décadas, vai haver mais uma reuniões de “notáveis” para a constituição do Observatório Social de Gaspar. É esperar para crer. E crer que vai ser independente, como é a essência dele. E sendo independente, proteja a cidade e não um sistema corroído pelas falta de transparência, privilégios e vinganças.
O vice prefeito de Gaspar, Rodrigo Boeing Althoff, PL, está fazendo um banco de dados próprio e pessoal para interagir com os eleitores e eleitoras no form.respondi.org. Segundo se justifica ao pedir o preenchimento do formulário, “isso nos ajuda a manter um controle mais organizado das pessoas que entram em contato conosco ou que nos encaminham algumas demanda“. Hum!
A entrevista do sub secretário de Fazenda e Gestão Administrativa, que está interventor do Hospital de Gaspar, Claudionor da Cruz Souza, na semana passada na rádio 89 FM, lavou a minha alma, mais uma vez. Nada além do que todos os meus leitores e leitoras por anos afio sabem do que acontece lá contra a cidade, os cidadãos e cidadãs, os mais fragilizados, em agonia em tempos de acidentes e doenças, buscando tratamento e curas. Expressiva, desculpe o trocadilho, foi a expressão de desânimo de um dos entrevistadores, Joel Reinert, proprietário da emissora.
É dívida para todos os lados. É problema de alta monta. Ainda vou retomar a este assunto. Ele é longo. Repetitivo. Enfadonho. Mas, o que está claro na desorganização? A falta de transparência com a comunidade que esteve ausente do processo. Foi esta ausência que o levou ao caos. A cada entrevista, ou discurso, é um número novo sobre dívidas. Impressionante. isto não é desorganização. É descontrole.
Outra. Estão “economizando” R$140 mil no Pronto Atendimento, mas estão diminuindo dois médicos a noite. Se economizam perigosamente de um lado, na outra ponta contratam sem licitação por R$249 mil de um estudo de reorganização administrativa, por quase R$60 mil enfeites de páscoa para ficarem 20 dias enfeitando a praça da prefeitura…
A única alta complexidade que está entranhada no Hospital é o beco sem saída em que ele está metido econômica, administrativa e financeiramente. “O objeto da intervenção já terminou há muitos anos. Deveria ser apenas um ano. Estamos há dez“, bem ressaltou o interventor Claudionor da Cruz Souza. O que esta afirmação é diferente daquilo que sempre escrevi aqui, que o próprio Hospital sempre me contestou? Sobre a Ação Popular contra o Hospital, do fogo amigo, que pode lhe custar outros R$50 mil, nem um pio de ninguém. Ela vai se somar a dívida que era R$16 milhões, que o “delegado prefeito” Paulo Norberto Koerich, PL, disse ser de R$44 milhões a um grupo de amigos, que Claudionor admite ser de R$47 milhões ou mais, mas que especialistas calculam ser em torno de R$60 milhões.

O varejo do novo governo, o da mudança, na prefeitura de Gaspar I. A Rua Frei Solano ficou interditada para as obras de drenagem. Nada a contestar. Sabia-se o tempo todo que o caminho alternativo para o Gasparinho, seria a Rua João Matias Zimmermann. Sexta-feira e sábado uma buraqueira só. Só no domingo, antes das chuvas, depois de enxurradas de queixas e contra o prefeito, é que a patrola fez o que deveria ter feito como dever de plantão da secretaria de Obras e Serviços Urbanos.
O varejo do novo governo, o da mudança, na prefeitura de Gaspar II. Uma ação da secretaria de Assistência Social limpou a frente da massa falida da antiga Metalúrgica Turbina. Parte daquele comércio clandestino e sem fiscalização de frutas e outras tralhas, mudou-se para o outro lado da rua. E lá continua. E por falar em lixo, bem defronte a prefeitura, no Mirante do Marco Zero, o lixo sobrava nos containers em pleno domingo (foto acima). Aliás, vereadores da própria base governista vem reclamando, por pressão da população, soluções para este tipo de problema que se espalha pela cidade e administrado pelo Samae, Do outro lado, coelhinhos enfeitando a praça.
Protocolo. Nas solenidades oficiais em Gaspar, a representação do Poder Legislativo não está sendo mencionada ou anunciada, mesmo estando o seu presidente nela. Alguém precisa avisar aos responsáveis pelo protocolo de que pessoas não podem ser confundidas com instituições. Elas são intocáveis e tem um lugar, caro e necessário na cidadania.
Papéis trocados. O vereador de oposição, Roni Jean Muller, MDB, mais uma vez foi a tribuna paras defender a implantação de escolas cívico-militares em Gaspar e sob o silêncio da bancada governista e bolsonarista. Ele contou sobre a visita que fez a uma delas em Blumenau e botou o governador Jorginho Melo, PL, para dançar junto com o seu pedido e desejo.

O varejo do governo, o da mudança, na prefeitura de Gaspar III. A Câmara de Gaspar, aprovou projeto de autoria do vereador Dionísio Luiz Bertoldi, PT, obrigando o governo de Gaspar a instalar câmeras de segurança nas escolas e creches municipais. No desejo, ele está certo. Mas, primeiro, o PL é inconstitucional: um vereador não pode criar despesas para o Executivo. E tudo passou por “especialistas”, nas comissões e votações. Segundo. O o que é mais intrigante? A secretaria de Educação de Gaspar já tinha feito o processo de licitação e estava instalando as tais câmeras nas escolas e creches.
O varejo do governo, o da mudança, na prefeitura de Gaspar IV. O governo do “delegado prefeito”, Paulo Norberto Koerich, PL, comeu mosca mais uma vez e diante de uma bancada que lavou as mãos naquilo que estava obrigada a enfrentar na Câmara. A comunicação não comunicou o que estava sendo feito e o pai da criança ficou para o vereador do PT. E se vetar, não substituindo com um Projeto de Lei igual ao aprovado, corre um sério risco de arrumar mais encrencas que do já possui no Legislativo.
Lenda ou não, o governador Jorginho Melo, PL, tem os filhos como eminência parda. E isso sempre lhe trouxe dores de cabeça e das grandes. Há inúmeros contratos, sob questionamentos e até interrompidos por prudência do próprio governo, ou aconselhamento de próximos e principalmente de instituições de fiscalização. Só falta agora esta prática da terceirização da sombra do titular em aproximação de fornecedores e analises de contratos ser imitada por prefeitos. Credo.
Esta semana, mais uma vez, só terá dois artigos.
3 comentários em “OS 100 PRIMEIROS DIAS DO GOVERNO DO “DELEGADO PREFEITO” PAULO E DO ENGENHEIRO RODRIGO, FORAM ATÉ AQUI, UM EXPERIMENTO SEM RESULTADOS”
Mais uma vez, os sindicados contra os trabalhadores aposentados ou se estabelecendo em fraudes – com a conivência do governo petista – para arrecadar mais
AUMENTO DE DESCONTOS EM BENEFÍCIOS DO INSS SUGERE FRAUDES DISSIMINADAS, editorial de O Globo
O aumento significativo na arrecadação de sindicatos com descontos nos benefícios previdenciários já deveria ter feito soar o alarme no INSS. Mas, pelo visto, as queixas de irregularidades só têm incomodado os beneficiários. Como mostrou reportagem do GLOBO com base em números obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, esses descontos somaram no ano passado R$ 88,6 milhões, quase o triplo do arrecadado em 2022 (R$ 30,7 milhões).
Surpreende que o INSS não saiba dizer precisamente o motivo da escalada na arrecadação dos sindicatos. A alíquota de contribuição não varia, mas o aumento do salário mínimo, referência para os benefícios, se reflete no valor arrecadado, de acordo com o instituto. Apenas isso, porém, não explica a disparada de arrecadação nos últimos anos nem a enxurrada de reclamações. A suspeita é que proliferem fraudes e descontos indevidos.
O desconto sindical pode ser cobrado de aposentados e pensionistas, mas precisa de autorização prévia do beneficiário. Por isso, têm chamado a atenção as queixas de segurados surpreendidos com descontos em seus contracheques. Relatório do próprio INSS mostra que em apenas um ano as reclamações desse tipo cresceram 280%. Uma auditoria identificou, entre janeiro de 2023 e maio de 2024, descontos indevidos de R$ 45,5 milhões.
Uma idosa de São Luís Gonzaga do Maranhão (MA) precisou entrar com processo contra uma confederação agrícola que lhe descontava R$ 30 todo mês. Desde 2020, perdeu mais de R$ 1,5 mil. O advogado que a representa explicou que ela não sabia conferir o extrato do INSS. Muitas vezes, a situação de vulnerabilidade favorece práticas indevidas. Um advogado da cidade de Floriano (PI), representante de cerca de 60 processos de segurados pedindo ressarcimento de valores, diz que a maioria dos casos envolve cidadãos da zona rural que não sabem ler nem escrever.
É certo que os sindicatos perderam arrecadação com o fim do imposto sindical decretado pela reforma trabalhista de 2017. Mas isso não é problema do beneficiário. Fica claro que falta fiscalização eficaz. O descontrole acontece também com empréstimos consignados. Embora o INSS alegue que as irregularidades venham sendo combatidas e que as queixas sejam tratadas na Ouvidoria, o crescimento dos descontos e das queixas mostra que as medidas tomadas, como a possibilidade de bloqueio do desconto pelo usuário, não são suficientes.
É uma insensatez jogar nos ombros do beneficiário a tarefa de verificar se o valor recebido está correto. A maioria nem confere o extrato, e o desconto de pequenos valores todos os meses dificilmente é percebido. Não é o cidadão que tem de provar que não autorizou o que não pediu. É o INSS que tem de fiscalizar se os sindicatos agem de forma idônea ao solicitar descontos.
LIBERAIS E MERCANTILISTAS, por Demétrio Magnóli, no jornal O Globo
‘Queima o que adoraste e adora o que queimaste.’ Com tal instrução, na inauguração da Catedral de Reims, em 496, o bispo São Remi batizou Clóvis, o rei dos francos, convertendo-o do paganismo ao catolicismo. Falta uma catedral, e o santo é um impostor, mas a instrução foi seguida: nos Estados Unidos, no Brasil e na Argentina, liberais convictos aderem ao protecionismo de Donald Trump. Ao curvar a espinha, tornam-se liberais-mercantilistas, um paradoxo teratológico.
Jair Bolsonaro celebrou a bomba nuclear tarifária de Trump sob a alegação de que “protege seu país de um vírus socialista”. O vírus, fica implícito, circularia não apenas na China ou no Brasil, mas também em países como Suíça, Japão, Coreia do Sul e Taiwan. Javier Milei, que se exibe como ultraliberal, não pronunciou qualquer crítica ao tarifaço, prometendo um “reajuste da regulamentação para que possamos cumprir os requisitos da proposta tarifária recíproca”.
Aqui, ali e acolá, arautos doutrinários do liberalismo justificaram o retorno dos Estados Unidos a níveis de tarifas do final do século XIX invocando “objetivos geopolíticos” e a “segurança nacional” americanos. Queimam, sem corar, tudo o que adoravam.
A doutrina liberal nasceu em oposição à política mercantilista, que buscava saldos comerciais positivos destinados à acumulação de moeda. Segundo David Ricardo, um dos pais fundadores do liberalismo, “sob um sistema de perfeito livre-comércio, cada país naturalmente devota seu capital e trabalho àqueles empregos que lhe trazem mais benefícios. Essa perseguição da vantagem individual é admiravelmente conectada com o bem universal de todos” (1817).
De acordo com a teoria das vantagens comparativas emanada do pensamento ricardiano, a melhor política nacional é a remoção completa de tarifas, mesmo que unilateral. Frédéric Bastiat, economista liberal francês, explicou que comércio significa “dependência recíproca”:
— Não podemos ser dependentes de um estrangeiro sem que ele seja dependente de nós. De fato, é isso que constitui a verdadeira essência da sociedade. Cortar inter-relações naturais não é tornar-se independente, mas isolar-se completamente.
Trump acredita no oposto disso — nutre-se de crendices mercantilistas. Para ele, o comércio é um jogo de soma zero: o que um ganha, o outro perde. Nas suas próprias palavras, os déficits comerciais generalizados dos Estados Unidos provam que seu país é “pilhado, saqueado, violado e extorquido por nações próximas e distantes” — e, mais, que o resto do mundo sequestra à maior potência econômica global “uma oportunidade de progredir”.
As tarifas, definidas em níveis proporcionais aos déficits bilaterais, funcionariam como ferramentas para equilibrar o intercâmbio com cada nação. Um mercantilista clássico almeja saldos positivos no conjunto da balança comercial. Trump é um mercantilista iletrado que busca o “sucesso” nas trocas com cada um dos parceiros, inclusive os mais irrelevantes.
A defesa incondicional do livre-comércio não é um detalhe, mas um dos pilares estruturais do liberalismo, pois sustenta a divisão internacional do trabalho. Os liberais-mercantilistas ajoelhados diante do altar trumpiano inventaram uma versão patológica de sua doutrina que prega uma mistura de ultranacionalismo econômico com cortes radicais de impostos e a eliminação de regulamentações trabalhistas, sanitárias e ambientais. Dito de outro modo, um faroeste econômico em que o Estado desempenha apenas funções de repressão social. Note-se, de passagem, que um programa desse tipo requer, como condição indispensável, a supressão das liberdades democráticas.
Bem antes de Ricardo, em 1742, David Hume escreveu um ensaio intitulado “Sobre o ciúme do comércio”. Nele, qualificou como “estreito” e “maligno” o ponto de vista de Trump:
— Nada é mais usual que enxergar o progresso dos vizinhos com um olhar de suspeita, descrevendo todos os Estados comerciais como rivais e supondo ser impossível que floresçam a não ser à sua expensa.
Em nome de Trump, e do temor irracional de um imaginário “vírus socialista”, os liberais sem vergonha tornaram-se mercantilistas.
RESPONSABILIDADE FISCAL DE MENTIRINHA, editorial do jornal O Estado de S. Paulo
O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, propôs que os gastos com segurança pública não sejam submetidos aos limites fixados pela Lei Complementar (LC) 200/2023, o chamado arcabouço fiscal. A prosperar mais essa artimanha legal e orçamentária, muito conveniente para governos preguiçosos, caminharemos a passos largos até a completa desmoralização da mera ideia de compromisso com o equilíbrio das contas públicas no País.
A proposta foi feita por Lewandowski a um grupo de senadores no dia 9 passado, durante uma audiência pública na Comissão de Segurança Pública do Senado para a qual o ministro foi convidado a participar. Entre outros assuntos, os membros do colegiado trataram da nova versão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública, apresentada por Lewandowski na véspera às lideranças da Câmara. Ao ser questionado sobre a omissão, no texto, da origem dos recursos que abasteceriam o Fundo Nacional de Segurança Pública e o Fundo Penitenciário Nacional caso a PEC seja promulgada, o ministro da Justiça justificou a ausência, com incrível singeleza, citando as limitações impostas pelo arcabouço fiscal.
Que o regime de controle dos gastos públicos aprovado em 2023 já nasceu frouxo, não há dúvidas. Igualmente, é conhecido o absoluto descaso do governo Lula da Silva – mas não só do Poder Executivo – com qualquer medida que represente, de fato, um compromisso genuíno com o equilíbrio das contas públicas. Mas até para esse padrão de desrespeito aos contribuintes que dá o tom da administração pública no Brasil a ideia de Lewandowski, se não chega a surpreender, é um disparate. Ora, trata-se, ninguém menos, do ministro da Justiça (e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, a Corte que zela pela Constituição) propondo aos senadores a flexibilização do cumprimento de uma lei em pleno vigor.
Governar implica fazer escolhas, muitas delas difíceis. Administrar bem – e, no caso da administração pública, governar em prol do bem comum – significa estabelecer prioridades e gerir recursos públicos escassos. Num país como o Brasil, premido por desafios, desigualdades e carências expostas aos olhos de todos para onde quer que se olhe, fazer boas escolhas e, sobretudo, adotar uma gestão eficiente e republicana dos recursos públicos são fatores determinantes para o destino de milhões de cidadãos que dependem do Estado para ter uma vida minimamente digna.
Se a segurança pública deve ser tratada – e deve – como uma “pauta prioritária” para o País, como disse há poucos dias o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), é dever do governo federal escrutinar o Orçamento de cima a baixo e identificar oportunidades de corte de gastos que permitam o financiamento de políticas públicas nessa e em outras áreas tidas como preferenciais pelos cidadãos. E isso, evidentemente, deve ocorrer em estreita parceria com o Congresso, na condição de representante dos interesses da sociedade e da Federação. Administrar um país empregando esforços na construção de exceções ao cumprimento de leis exigentes, e não o contrário, pode até ser mais fácil para o governo federal, mas também é o caminho mais curto e certeiro para a ruína.
Para citar poucos exemplos, oportunidades de corte de gastos decerto não faltam num país que concede aos membros do Poder Judiciário privilégios inimagináveis para servidores até de outros setores do funcionalismo, que dirá da iniciativa privada. Ademais, como justificar a necessidade de excluir os gastos com segurança pública das regras do arcabouço fiscal quando a deputados e senadores é dado dispor de quase R$ 60 bilhões a título de emendas parlamentares, não raro opacas e ineficientes?
Por fim, não se pode deixar de considerar que a proposta desarrazoada do ministro Ricardo Lewandowski, apenas mais uma no contexto de reiterados “furos” no natimorto arcabouço fiscal, está totalmente em linha com o desejo de Lula da Silva de gastar como se não houvesse amanhã em nome de sua eventual reeleição em 2026. O busílis é que haverá amanhã – mas ninguém no governo federal parece perder o sono pensando nisso.