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IMPÉRIO QUE NÃO QUER CAIR, por Demétrio Magnoli (*)

* Sociólgo e doutor em geografia humana pela USP. Texto originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo

“É tudo culpa de Lênin”, pontificou outro Vladimir, Putin, no sinistro discurso que pronunciou na TV russa anunciando o reconhecimento da independência dos enclaves separatistas do Donbass. O líder da Revolução Russa teria fabricado a Ucrânia, privando a Rússia de seu berço cultural. A história putínica é lenda destinada a justificar uma guerra de agressão, mas ilumina um dilema de cem anos.

Nas suas linhas gerais, o mapa atual da Europa foi desenhado pelos tratados que encerraram a Grande Guerra, entre 1918 e 1920. Sob o impacto dos nacionalismos e do programa de Woodrow Wilson, nasceram os Estados-Nação.

As novas entidades, supostamente ancoradas na língua e na tradição, foram esculpidas a partir das ruínas dos impérios que desabavam. Desapareceram os impérios Alemão, Austro-Húngaro e Turco-Otomano. Contudo, graças ao triunfo dos revolucionários bolcheviques, sobreviveu o Império Russo, apenas convertido na URSS. “Império vermelho”, mais que uma expressão retórica, é a descrição precisa da conservação de um fóssil no permafrost do Estado soviético.

Nada, porém, atravessou impunemente a era dos nacionalismos. O tema nacionalista infectou o pensamento comunista, condicionando a organização política do “Império vermelho”. Lênin, o danado, criou uma união de 15 repúblicas nominalmente soberanas. Nesse sentido específico, Putin fala a verdade.

De fato, claro, o Estado soviético era uma entidade centralizada: uma constelação que girava ao redor da Rússia, ou melhor, do PCUS. Não é por acaso que cada república tinha seu próprio partido comunista, menos a Rússia. O partido único russo era o PCUS, centro intocável do poder. Mas, ironicamente, a soberania fictícia das repúblicas soviéticas propiciou, no final de 1991, o fundamento jurídico para a criação dos 15 Estados pós-soviéticos, entre os quais a Ucrânia.

A história putínica, fixada em Lênin e na implosão da URSS, ignora o nacionalismo ucraniano. Como todas as narrativas nacionais, ele ergue uma “comunidade imaginada” cuja inspiração remonta ao proto-Estado militar cossaco (Zaporozhian Sich) que, entre 1552 e 1775, conservou uma relativa autonomia diante de poloneses, otomanos e russos.

Na saga nacional ucraniana, ocupa lugar de destaque o Holodomor, o extermínio pela fome de mais de 3 milhões provocado pela coletivização forçada soviética em 1932-33, que reacendeu a chama antirrussa. O termo genocídio, hoje capturado por oportunistas diversos, inclusive Putin, define adequadamente a tragédia emanada daquele experimento de engenharia político-social. A revolução popular na Ucrânia, em 2013-14, que está na raiz da invasão russa em curso, evidenciou a persistência do nacionalismo ucraniano.

A expansão da Otan para leste, um erro histórico do Ocidente, não é a causa da invasão russa, mas o pretexto encontrado pelo chefe do Kremlin. A hipótese de candidatura da Ucrânia à aliança ocidental foi congelada desde a ação militar russa de 2014. O real motivo da invasão foi exposto por Putin, no discurso em que rejeitou a legitimidade de um Estado ucraniano soberano. Sua ambição é restaurar a “Grande Rússia”, começando pelo núcleo tripartite Rússia/Belarus/Ucrânia. O Império Russo – preservado sob a forma de URSS no final da Grande Guerra e quase arruinado em 1991 – tenta se reconstituir por meio de uma capitulação versalhesa da Ucrânia.

Nossa Constituição determina que, nas suas relações internacionais, o Brasil rege-se pelos princípio da “independência nacional”, da “autodeterminação dos povos”, da “não-intervenção” e da “igualdade entre os Estados”. O Itamaraty passou os três dias decisivos recusando-se a condenar a invasão russa. Nesse passo, Bolsonaro convergiu com Dilma Rousseff, que rejeitou condenar a anexação russa da Crimeia em 2014. São governantes que sabotam nosso contrato político.

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