Nos bastidores de Gaspar repercute acentuadamente ainda o que aconteceu no domingo à tarde em Brasília. Não exatamente o que se espalhou pela imprensa nacional e internacional, mas quem daqui foi para lá, ou pode, de alguma forma, estar relacionado ao financiamento de parte deste movimento. É um tal de apagar postagem pré-viagem, organização e até, participação no evento.
Agora, no máximo, o que se admite é que estando “causalmente” em Brasília no domingo, sendo um patriota, o morador daqui, testemunhou, algo que ficou fora de controle. Já os financiadores dizem que tiraram grosso dinheiro do bolso para um ato que não previa o vandalismo, mesmo sabendo que tudo convergia há muito tempo para a confrontação física dos símbolos do poder como um recado cifrado de descontentamento.
O problema é que há muita prova pública constituída pelos próprios envolvidos – com ares de heroísmo, demarcação de território e exibição – que os ligam ao problema e os metem no centro das investigações. Há até mecanismos oficiais criados para denúncias e identificação de envolvidos. Por isso, não vou entrar em detalhes, dando nomes conhecidos e “admitir” que seja isso que alegam. E encerro o assunto por aqui, até porque as investigações estão correndo soltas e não será este espaço o dedo duro desse vasto material que há por aí e que se acumula há muito tempo.
Aliás este tal “fora de controle” tem muito a ver com o frenesi coletivo, ou a bolha. Ele é bem definido na psicologia como “efeito manada”.
Quatro são os fatores para que se dê este efeito: a primeira é a garantia de se sentir seguro e aceito por parte da liderança e dos membros; a segunda é o impedimento de riscos ou punições por agir ou pensar de forma diferente, assegurando a preservação da imagem; uma terceira causa é a que entende que seja preciso seguir o líder ou a maioria por haver lógica por detrás daquele comportamento; e a quarta, é a percepção de que agir ou pensar daquele modo gera algum benefício, seja material, reconhecimento ou afetivo.
Não sou psicólogo, por isso não vou continuar, mas está explicado. E está claro também, se você voltar e reler estes quatros pontos, que, muita coisa não fecha nesta relação custo-benefício. Ou seja, está faltando segurança, não se está livre de punições, não há lógica para resultados e faltou o benefício aos que se entregaram de corpo e alma nesta aventura, que dizem ser patriótica
E quem está “tentando se escapar neste momento”, não só está admitindo explicitamente que escolheu o líder ou o herói errado, mas principalmente, de está “traindo a tal causa”. E por quê? Não está declarando arrependimento, que se faz para aparentemente apenas se livrar da punição que está chegando. O arrependimento se dá, verdadeiramente, diante da compreensão de que há um erro neste ambiente de relacionamento conturbado dentro da sua própria bolha. Ou seja, de que há um contexto a ser considerado.
Já escrevi aqui várias vezes e por longo tempo, pois o que aconteceu no domingo é fruto de algo que se amadureceu por anos a começar pelo negacionismo da ciência, e por estas minhas posições até já fui taxado de “isentão”, o mesmo de comunista diante da divergência. Meu Deus!
Jair Messias Bolsonaro, PL, foi a pior coisa que pode ter havido à causa da direita, dos conservadores e dos liberais no Brasil. A história irá consagrar isto. Antes de ser um doido, ele é um indisciplinado e centralizador que catalisou gente como o mesmo espírito esparsa por aí há décadas. As redes sociais foram as que deram visibilidade, alimentaram e fortaleceram esta gente sem noção. Foi exatamente a indisciplina que o colocou na reserva do Exército. Como político nada fez por anos seguidos no na Câmara, além de produzir bravatas para ser manchete necessária e pontual.
Então como com estes traços ele poderia ser um líder confiável? E na falta de um, alimentado por extremistas, ele foi para gente que estava a procura de um neste campo ideológico
Usou Deus numa plataforma oportunista das endinheiradas igrejas neopentecostais; usou a Pátria de forma torta diante uma suposta ameaça comunista num rótulo fácil de confisco da propriedade para uma sociedade de prevalente economia de mercado, e a Família, um elo nuclear primário de amparo, quando a sua é, pelo exemplo de vida, uma fratura no conceito ortodoxo que ele mesmo pregava.
O que mostra isso tudo? O vazio do lado da direita e a incapacidade de ela enxergar o horizonte de forma organizada, com um representante confiável, capaz de dialogar, unir, liderar e representar um espectro que poderá até incluir os radicais; entretanto, estes radicais não poderiam ser o centro deste campo ideológico. E infelizmente, foram.
Foram esses radicais, falsamente enrolados em bandeiras, com sonhos ditatoriais e constrangendo quem não se alinhava submissamente a eles, que deu a vitória a Luiz Inácio Lula da Silva, PT, o escolhido por Bolsonaro e bolsonaristas para ser derrotado nas urnas, pois ambos, impediram, deliberadamente, uma terceira via foram desses ambientes nitidamente conflagrados e manchados.
Resultado desta alquimia? Deu tudo errado nos dias dois e 30 de outubro do ano passado. Usados ou conscientes, os moderados de direita, conservadores e liberais inconformados com os resultados das urnas e do projeto de poder, foram enganados ou se enganaram desde então nas portas dos quarteis. E deu também ruim, no domingo à tarde. Consequências? Uns choram, outros se escondem ou negam o que está retratado, alguns pagarão, enquanto a esquerda do atraso se fortalece, como vítima de um processo criado pelo “efeito manada” da desinteligência, organização e falta da verdadeira liderança de oposição.
Ao menos até agora, não estamos vendo o que aconteceu entre 1964 e 1968 com a dura repressão aos dissidentes políticos. Ao menos, se faz com transparência e tem preso custodiado, transmitindo do cárcere nas redes sociais e aplicativos de mensagens, as suas angústias, decepções ou denunciando supostos abusos. Ou seja, há liberdade de expressão mesmo em circunstância de restrições.
O que se deve cuidar, são para as narrativas. De ambos os lados. Elas retroalimentam o ódio, o nós contra eles, enfraquecem o governo de plantão e estado democrático de direito. E é fácil perceber que a esquerda do atraso provoca. E o deputado Federal mineiro, André Janones, do nanico Avante, lidera para o governo de Lula, com os mesmos defeitos que se condena ou tenta se tipificar para condenar formalmente nos bolsonaristas. Impressionante como se passa o pano neste caso, inclusive no ambiente da jurisdição.
Retomo e encerro.
Perdeu? Uma pena! Mas, é do jogo e este, foi, desta vez, mal jogado pela direita. Ela se deixou representar pelo extremismo exacerbado. Nada está perdido se não se levantar imediatamente, sacodir a poeira e dar a volta por cima, como diz o cancioneiro popular. Contudo, não será com as tramas e gestos de domingo passado. É preciso muito mais: inteligência, organização e principalmente, liderança confiável, presente e articulada. A direita está órfã, fora de contexto e de uma realidade articulada. Wake up, Brazil!
TRAPICHE
O inferno do governador Jorginho Mello, PL. Emitiu um recado contra os atos de Brasília. Os bolsonaristas ficaram fulos. Negou-se a ir a reunião extraordinária dos governadores convocada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, PT. Voltou atrás, e penso, acertadamente. Emitiu uma nota dizendo que cumpriria as determinações do STF para terminar as aglomerações. Mais bolsonaristas chateadas.
O que mostra isto? Que Jorginho não está alinhado à minoria radical do bolsonarismo, aninhada no seu PL. Isto mostra também que está caminhando para uma maioria na Assembleia sem depender de gente, no fogo amigo, que por nada, emperra tudo. Às vezes por pirraça, às vezes por picuinhas ideológicas e só para fazer espuma a um público externo e pequeno e ganhar audiência e likes nas redes sociais.
Santa Catarina estará escanteada há anos no governo central e por razões óbvias. Aliás, Santa Catarina sempre foi o patinho feio, apesar do grosso imposto que manda para Brasília. Foi assim, inclusive, no governo do amigão, Jair Messias Bolsonaro, PL. A ida de Jorginho à reunião, no entanto, como foi o caso do governador de São Paulo, Tarcísio Gomes de Freitas, Republicanos, não é só um gesto de distensão com o governo Federal no pacto federativo além de um amadurecimento institucional sem subverter as posições ideológicas divergentes, mas de novas tensões por aqui.
Este sempre será o inferno de Jorginho. Se Carlos Moisés da Silva, Republicanos, teve a vice bolsonarista, Daniela Cristina Reinehr, hoje no PL, a infernizá-lo, Jorginho terá uma penca deles na Assembleia e na Câmara, e quiçá no Senado, com o desconhecido dos catarinenses, Jorge Seift Júnior, PL
Trocando de assunto. Sobre o comentário de sexta-feira em que mostrei como está se esfarelando o MDB, um leitor que pediu para não se identificar e nem publicar a sua observação, na área de comentários, pois teme repressões a si e seus negócios, sugeriu que eu nos meus comentários, especulasse nomes fora mesmice do ambiente político gasparense. Até nominou um, mas já adiantou que o nominado não deseja concorrer.
Ora, se o sugerido já adiantou ao meu leitor que não quer entrar nesta parada, qual é a razão para colocar o nome na praça?
Não vou especular e nem servir de garoto propaganda. Vou trabalhar com os fatos concretos. Se alguém se declara candidato a prefeito de Gaspar, ele será notícia e estará sob observação, incluindo a viabilidade partidária.
Com todas as incertezas que se trava no ambiente político para 2024, parece estar claro que a organização partidária será necessária, mas poderá não ser tão importante assim, se for encontrado um nome novo que galvanize várias correntes conservadoras e de interesses empresariais. Ela fará frente, ao que se apresentar à esquerda e disser no palanque que representa o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, PT, com todos os bônus ou ônus do segundo semestre de 2024. Acorda, Gaspar!
5 comentários em “QUEM DE GASPAR ESTAVA EM BRASÍLIA NO DOMINGO? NAS REDES SOCIAIS DESAPARECERAM OS PATRIOTAS”
O PLANALTO ESTAVA DESGUARNECIDO, por Elio Gaspari, nos jornais O Globo e Folha de S. Paulo
As invasões do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso tiveram muitas respostas, todas certas. Como bem lembrou o repórter Guga Chacra, o Judiciário e o Legislativo uniram-se ao Executivo, coisa que não aconteceu em Washington em janeiro de 2021. Sobraram perguntas. A mais óbvia é a do financiamento. Segundo o ministro da Justiça, Flávio Dino, pelo menos em dez estados já foram identificadas fontes. Pode-se esperar que as investigações deem nomes aos bois. Restam outras, e entre elas há uma: o que aconteceu com o Batalhão da Guarda Presidencial?
Trata-se de um corpo de tropa criado por Dom Pedro I há exatos 200 anos. Ele existe para proteger o presidente e seus palácios. Jamais aconteceu o que se viu no domingo. Dois imperadores e quatro presidentes foram depostos sem invasões do palácio.
Com sua experiência de criminalista, o advogado Alberto Zacharias Toron já disse que “inquietante é a questão de saber por que o Batalhão da Guarda Presidencial não defendeu o Palácio do Planalto”.
Uma notícia da Agência Brasil, divulgada às 17h02, dava conta de que a tropa do Batalhão da Guarda estava chegando ao palácio. O Planalto havia sido invadido às 15h10. Entre os invasores havia pelo menos um espertalhão, pois levaram equipamentos de fotografia do onipresente Ricardo Stuckert.
Inquietante é também que o general da reserva Hamilton Mourão, ex-vice-presidente da República e atual senador eleito pelo Rio Grande do Sul, tenha dito que “o controle da anarquia é responsabilidade do governo do Distrito Federal”. Se um capitão dissesse isso ao general quando ele estava no serviço ativo, talvez fosse preso. Em seguida, Mourão foi mais específico:
– Repito que o governo do Distrito Federal é responsável e, caso não tenha condições, que peça ao governo federal um decreto de GLO.
GLO são as iniciais das operações de Garantia da Lei e da Ordem, nas quais o governo mobiliza efetivos militares para preservar a tranquilidade pública. A sugestão, vinda de Mourão, ou de qualquer outra pessoa, é mais um motivo de inquietação. Por que o presidente deveria baixar um decreto de Garantia da Lei e da Ordem, se o palácio estava invadido? O Batalhão da Guarda Presidencial não precisa de decreto para guardar o palácio presidencial.
Desde 2018, quando o general Eduardo Villas Bôas soltou seu famoso tuíte, é pública a malquerença de uma parte da oficialidade com Lula. Agora mesmo, o comandante da Marinha não passou o cargo ao sucessor, apesar de ter comparecido, em trajes civis, ao almoço que o almirante Marcos Sampaio Olsen ofereceu aos colegas em sua casa.
Lula governou o Brasil por oito anos sem qualquer encrenca com os militares. A oposição ao seu governo jamais flertou com golpes. O mesmo não se pode sequer pensar hoje. Está nas livrarias “Poder camuflado”, do repórter Fabio Victor. Ele reconstitui a origem da malquerença de militares com os governos petistas. Lê-lo ajudará a não repetir erros.
Vivandeiras civis e oficiais pensando em golpe fazem parte da vida nacional desde a segunda metade do século XIX. Bolsonaro adicionou a esse prato os ingredientes da indisciplina nas polícias militares e dos cidadãos dispostos a acampar pedindo um golpe militar.
APENAS MAIS OUTRO MITO, por José Serra, senador por São Paulo, no jornal O Estado de S. Paulo
Quando Jair Bolsonaro – o mito – assumiu o poder, não era difícil prognosticar sua trajetória de instabilidade institucional, que redundou no colapso prematuro de seu mandato. Vários fatores contribuíram para esse processo de corrosão do que muitos previam como o início de uma era do bolsonarismo.
Faltava-lhe uma base partidária suficiente para garantir maioria congressual ou, pelo menos, formar uma coalizão confiável e minimamente programática para viabilizar seus objetivos. Mais que isso, faltava-lhe ânimo e estímulo para negociar com base em concessões mútuas. Sua relação com o mundo político era um jogo de soma zero radical, ou ganho tudo ou não cedo nada.
Seus primeiros movimentos no governo foram marcados por revogaços e tentativas de governar por decreto. Hoje está claro que ambos, revogaços e decretaços, além, é claro, de serem tentativas do tipo “se colar, colou”, eram parte integrante da campanha continuada. Hoje, também está claro que a campanha permanente se revelou a verdadeira essência de seu governo.
Suas promessas de instaurar uma revolução liberal, com reforma tributária, da administração pública, da política externa e do comércio exterior, um programa completo de privatizações e uma cruzada teocrática, tiveram o mesmo destino. Ou seja, foram abandonadas por falta de apoio do Congresso ou esbarraram nas lutas internas resultantes da heterogeneidade entre seus fiéis seguidores.
O ex-presidente parece ter se cansado de dar de cabeça no muro institucional e terceirizou o governo pelo resto do mandato presidencial. Ficou assim traçado o trajeto que o conduziria a abandonar precocemente a Presidência e retirar-se do País.
Como tenho comentado, neste mesmo espaço, ao longo dos últimos anos, a polarização da competição eleitoral em 2018 não espelhava uma pretensa polarização da sociedade. No caso da sociedade, o objetivo de uma estratégia deliberada de duas candidaturas que pleiteavam visões radicalmente opostas da convivência social e política do Brasil – cada uma transfigurada em seu próprio mito – e que vedavam qualquer manifestação de alternativa moderada independente.
De um lado, Fernando Haddad, porta-voz de um Luiz Inácio Lula da Silva ungido por Deus, com a missão de ser o mártir da honestidade, da verdadeira democracia, da ressurreição da Nação, do equilíbrio fiscal com crescimento econômico, da erradicação da fome e da miséria. De outro, Bolsonaro, um soldado insubordinado, igualmente ungido por Deus para exercer o poder absoluto, impor a democracia das “quatro linhas”, porventura traçadas por ele mesmo.
A estratégia da campanha continuada e da polarização permanente se estendeu durante todo o mandato de Bolsonaro e se radicalizou na campanha eleitoral de 2022. De um lado, ameaças bolsonaristas de golpe, via anulação do pleito. Do lado petista, acusações de lesa-pátria para quem ousasse não declarar voto em Lula.
A estratégia era comum, mas a tática lulista foi mais bem-sucedida. Permitiu-lhe, com promessas de pacificação e austeridade fiscal, seduzir os votos de centro, sem os quais sua derrota nas urnas seria inevitável. Bolsonaro, ao contrário, como diria Ulysses Guimarães, ciscava para fora: não apenas nada fez para atrair o eleitor moderado, mas o tratou com repúdio e ameaças contra seus ideais mais caros. Além disso, sua tática de beneficiar apenas seus fiéis seguidores impediu que agregasse novos eleitorados.
A vitória de Lula provocou alívio generalizado de uma população exausta com uma campanha radicalizada, carregada de ódio e de ameaças. As lideranças mundiais, que Lula sabe cativar como ninguém, a imprensa estrangeira, tudo contribuiu para que a opinião pública se sentisse novamente livre de um destino de pária.
Durou pouco. Rapidamente Lula desperdiçou seu capital político antes de assumir o poder. Sua equipe de transição mostrou, mais uma vez, que Lula não deseja nem fingir que tem um projeto de governo, enquanto as facções do petismo têm – e formam pequenas minorias de veto que impedem qualquer tentativa de consenso intra e extrapartidário. Não me lembro de ter visto um presidente trocar orçamentos ministeriais por apoio congressual praticamente em praça pública. O mensalão, pelo menos, foi discreto.
Mas o ambiente de uma diplomação conturbada e a expectativa de um confronto na posse foram ofuscados pelo show de panem et circenses na Praça dos Três Poderes, e o petismo passou uma borracha e um novo Lula estava assumindo plenos poderes e voltaríamos a ter governo, o que deixamos de ter desde 31 de outubro.
Reiterando o que disse sobre Bolsonaro, os primeiros movimentos do governo Lula foram marcados por revogaços e tentativas de governar por decreto. Hoje está claro que ambas as maneiras são parte integrante da campanha continuada e da polarização permanente.
O assalto de domingo aos três Poderes é uma pequena amostra da falta de um governo, isto é, de uma liderança comprometida com um projeto de governo, apoiado em uma equipe com capacidade governativa e uma maioria estável e confiável.
NINGUÉM CONFIA, por Willian Waack, no jornal O Estado de S. Paulo
A natureza da relação entre Lula e os militares é de desconfiança mútua e a barbárie bolsonarista em Brasília serviu para aprofundá-la. É essa desconfiança que fez Lula eliminar de saída a opção de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) quando informado da gravidade dos fatos.
Lula não queria correr o risco de ver os comandantes militares se recusando a cumprir ordens. Eles têm reiterado ser impensável uma conduta desse tipo, mas houve um momento no domingo que teria sugerido exatamente isso.
Foi quando o governo federal quis desmontar já na noite do domingo o acampamento no QG do Exército, e no qual haviam se refugiado participantes dos ataques aos três Poderes. Ali os ministros da Defesa e da Justiça depararam-se com delicada situação: a presença no acampamento de familiares de oficiais, entre eles a esposa do general Villas Boas, ex-comandante do Exército e uma das figuras mais veneradas por colegas de farda na ativa e na reserva.
Pairava no ar entendimento não explicitado formalmente de que, se uma ordem de desocupação imediata fosse dada, não seria cumprida. Optou-se por uma solução de compromisso. O desmonte do acampamento ocorreu no dia seguinte, já sem os parentes de oficiais.
Contornou-se um agravamento da crise, mas ficou um gosto ruim. Lula tinha engolido a contragosto a conduta do ministro da Defesa, para o qual a “pacificação” implicava evitar um episódio de confronto aberto com os militares.
José Múcio foi escolhido exatamente por isso para o cargo e, nesse sentido, vem cumprindo a missão. Ganhou como recompensa escancarada campanha dentro e fora do PT para demiti-lo. Que produziu até aqui resultado irônico: quanto mais apanha do PT, mais os comandantes o aprovam – os militares gostaram de Múcio pelas razões que o PT não gosta.
Convencido da “contaminação” bolsonarista entre militares, Lula praticamente eliminou na primeira semana de governo o GSI sem colocar nada no lugar. Os fatos do domingo demonstraram, porém, ter sido erro primário a inexistência de aparato próprio de inteligência.
A politização de contingentes militares, e de hierarquias, é um dos piores legados de Bolsonaro. Não é pequeno o número de oficiais-generais convencidos de que Lula só disputou a eleição por manobra do STF. E só venceu pela atuação do TSE.
Importantes generais da ativa e da reserva não veem danos de imagem à instituição trazidos pela politização bolsonarista. Portanto, não julgam necessário nem adequado qualquer “meaculpa”. Vão bater continência a instituições, mas sem a intenção de “sentar para conversar”.
BOLSONARO, O TALISMÃ DE LULA, por Eliane Cantanhêde, no jornal O Estado de S. Paulo
Daqui a pouco, o presidente Lula vai se sentir tentado a acender velas para o antecessor Jair Bolsonaro e os bolsonaristas mais golpistas. Quanto mais eles radicalizam, mais ele une o País em torno dele e da democracia e, desde domingo, reúne um impressionante leque de apoios, internos e internacionais. Faz do limão uma limonada. E que limonada!
Os ataques às sedes dos três Poderes não produziram só medo, lágrimas e imagens chocantes de vidros despedaçados, móveis históricos arrebentados, obras de arte danificadas e relíquias roubadas. Produziram, também, um imenso movimento de união nacional.
Esse movimento vem desde a própria campanha eleitoral, quando o medo de Bolsonaro e das ameaças à democracia, às eleições e às urnas eletrônicas jogou no colo e no balaio de votos de Lula importantes personagens de centro e até de direita, do mundo político ao econômico, do jurídico ao cultural.
Também na posse, Bolsonaro deu uma forcinha, ao fugir para Orlando, nos EUA, dois dias antes e abrir caminho para Lula gerar, para o Brasil e o mundo, as imagens mais impactantes da sua volta ao poder: a subida na rampa do Planalto com oito representantes da rica diversidade brasileira, de quem recebeu a faixa presidencial.
Agora, vejam bem o que vem ocorrendo desde domingo. Entidades patronais e de trabalhadores, sociais e do agronegócio, de todas as tendências e regiões, se uniram num grito uníssono, de solidariedade e defesa da democracia.
Se não fossem os atos terroristas, Lula teria reunido 27 governadores de todos os Estados e do DF numa cerimônia de solidariedade e atravessado com eles a Praça dos Três Poderes, a pé, para homenagear um Supremo depredado e em choque?
Teria se reunido com os presidentes dos demais Poderes, para repudiar a selvageria, reforçar a democracia, obter um compromisso inarredável com a paz e a civilidade política, inclusive com o presidente da Câmara, Arthur Lira? Apesar de ter votado com os interesses do governo Bolsonaro, Lira nunca ultrapassou uma linha, a da democracia. E reforça isso com Lula.
E, não fosse o domingo, Lula teria se reaproximado tão rápido das Forças Armadas? Em reunião com os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, ele falou de sua indignação e irritação. Ouviu de volta a condenação aos atos, a defesa da democracia e a solidariedade aos Poderes – e a ele.
Bolsonaro está isolado, há 1.500 presos e os financiadores estão na fila. Quem se deu bem? Lula, um homem de sorte até no azar. Segundo o vice Geraldo Alckmin, “é na adversidade que a democracia cresce mais”. Lula também.
A DEMOCRACIA RESISTIU AOS GOLPISTAS; JÁ A DIREITA, SUCUMBIU, por Joel Pinheiro da Fonseca, no jornal Folha de S. Paulo
Se o objetivo dos golpistas era dar mais legitimidade às decisões de Alexandre de Moraes, conseguiram. Subitamente, as críticas às suas decisões parecem menos relevantes. Não porque o argumento jurídico subjacente tenha mudado, mas porque ficou claro que, do lado oposto ao ministro está uma horda de bandidos e arruaceiros.
A pergunta urgente é por que Alexandre de Moraes é a única autoridade a dar um basta decisivo em atos violentos contra a democracia? Todas as outras autoridades – a quem caberia restabelecer a lei – ou fazem corpo mole conivente ou são paralisadas pelo medo e pela extrema cautela, cheios de dedos para pedir por obséquio que os manifestantes que façam a gentileza de voltar a suas casas. Como se uma multidão que reza para um pneu, implora por golpe de Estado e defeca no prédio do Congresso fosse se deixar persuadir por um pedido bem-educado.
Seja como for, ainda que unicamente graças ao Supremo, a democracia brasileira resistiu ao pior ataque desde 1964. Prédios foram danificados, mas a vida pública continuará ilesa. Já a direita brasileira foi ferida de forma mais grave.
É preciso reconhecer: nunca houve nada de patriótico ou admirável no bolsonarismo. Sempre foi uma mistura doentia de alucinação coletiva e desejos autoritários. O Brasil precisa de uma direita comprometida com a democracia, e o primeiro passo para isso é condenar duramente todos os bandidos que participaram da invasão aos Poderes, bem como repudiar cada um dos influenciadores e lideranças que os estimularam nos últimos meses.
Agora que os atos falharam, muitos deles, que seriam os primeiros a saudar os “bravos revolucionários” se a intentona desse certo, agora se fazem de surpresos e dizem condenar qualquer violência. Tendo aplaudido e incentivado cada novo passo das organizações golpistas, fica difícil acreditar que repudiam sua consequência inevitável. Aliás, a Câmara dos Deputados, num ato inclusive de autodefesa, deveria impedir a posse ou cassar o mandato de todo representante que tenha aplaudido as manifestações golpistas. Eles também respondem pela destruição de seu próprio local de trabalho.
É perfeitamente razoável se indignar contra a volta de Lula à Presidência ou contra decisões de Alexandre de Moraes. Mas quem os tenta derrubar pela violência é muito pior do que eles. É preciso criticar com verdade e com compromisso democrático inabalável. A vitória há de ser conquistada nas urnas, não no golpe. E, para isso, a direita precisa ser exorcizada da paranoia anticomunista, das teorias da conspiração, do ódio à imprensa, da rejeição à ciência.
A direita representa a liberdade e responsabilidade individuais, a crença no poder do trabalho, na eficiência econômica, no realismo com a natureza humana, na importância de criar um bom ambiente para as pessoas se desenvolverem em vez de tentar – em vão – garantir tudo a todos.
Prega também o respeito às tradições e à fé, na certeza de que sem uma estrutura moral não há sociedade que resista. É essa estrutura moral que a direita bolsonarista jogou no lixo, optando pelo vale-tudo, inclusive a mentira e a violência, em nome do poder. Ver arruaceiros entoando hinos gospel enquanto depredavam o Congresso é o sinal de uma profunda doença espiritual. Os escombros dos prédios de Brasília serão limpos em algumas semanas. Os da direita vão demorar um pouco mais.